Eleito melhor fotógrafo de retratos do ano, Gui Christ explica conceito do projeto 'M'kumba': 'Potência da fotografia para combater a intolerância'
17/04/2025
(Foto: Reprodução) Com ensaio sobre religiões afro, brasileiro foi eleito melhor fotógrafo de retratos do ano pelo Sony World Photography Awards 2025 --um dos mais importantes e concorridos prêmios de fotografia do mundo. Em entrevista exclusiva ao g1, ele também contou sobre o processo para construir algumas das imagens do ensaio; VÍDEO. Brasileiro Gui Christ vence concurso mundial de fotos com ensaio contra racismo religioso
Eleito na quarta-feira (16) o melhor fotógrafo de retratos do ano por um dos maiores prêmios de fotografia do mundo, Gui Christ fez questão de comemorar com uma saudação a Ogun. "Ogunheeeeeeee! Toda vitória pertence a Ogun, pertence a todos os terreiros do Brasil", postou direto de Londres em uma rede social.
Faz sentido, já que o prêmio está ligado diretamente à fé que ele pratica há vários anos e está na raiz de sua família. "Tem uma história que contam, que é de que minha bisavó tinha um terreiro", diz enquanto caminhamos em busca de um lugar em paz para fazer a entrevista -- um grande desafio, tratando-se da Zona Central de São Paulo.
Ele topou falar ao g1 sobre o conceito por trás de "M'kumba", o projeto fotográfico que o levou ao título.
O fotógrafo Gui Christ posa para foto no Parque Augusta, na Zona Central de São Paulo, após entrevista ao g1
Fábio Tito/g1
Nascido em Niterói, o fluminense de 45 anos mora na capital paulista há 11 e resolve fácil tomando a frente quando avistamos algumas mesas que dariam um bom lugar pra entrevista, todas ocupadas. Ele se apresenta a uma moça e pergunta se tudo bem compartilharmos o espaço, ela não vê problema, até o encoraja a aparecer no vídeo quando ele se surpreende com a câmera. Achava que a entrevista seria só gravada em áudio.
O fato de ser branco fez com que demorasse muito tempo até que sentisse a violência do racismo religioso em sua própria pele. Alguns anos atrás, vestido de branco com fios (colares) tradicionais de umbandistas, ele andava por uma calçada quando um motorista simplesmente jogou o carro para cima dele. Gui teve que se jogar no chão dando uma cambalhota para não ser atingido. De relance, viu um adesivo que fazia menção a Jesus na traseira do carro, que seguiu pela rua.
Esse episódio ocorreu na mesma época em que outros elementos o ajudaram a formular a ideia do "M'kumba". Entre eles, a sugestão vinda diretamente de Zé Pelintra através de seu pai de santo no terreiro e a leitura de um livro sobre intolerância religiosa. Leia a entrevista completa abaixo.
g1: Você pode primeiro se apresentar e falar um pouco da sua trajetória?
Gui Christ: Bom, meu nome é Gui Christ. Eu sou fotógrafo documentarista. Atuo já há mais ou menos uns 15 anos no mercado documental. Eu vim da publicidade e, por uma questão de sonho, me joguei nessa aventura que é ser fotógrafo documental. E sempre venho trabalhando em relação às questões das populações e territórios periféricos do Brasil. Então, nesses 15 anos eu fiz trabalhos sobre ocupações sem teto, sobre comunidades carentes, tentando sempre mostrar a contra-história desses povos, sempre tentando mostrar a perspectiva dessas populações em relação à história que é contada pela história hegemônica.
'A Morte tem medo da galinha-d'angola': imagem faz parte da série 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
g1: Qual é o conceito por trás do seu projeto, "M'kumba"?
Gui: Macumba é uma palavra de origem de Congo-Angola, quer dizer encontro de sábios. Encontro dos senhores das palavras. E eles tinham nesses encontros, nas macumbas, um momento para poder cultuar seus ancestrais que ficaram em África, ou os novos ancestrais que eles encontraram aqui nas Américas, no caso, no Brasil. E, por causa da visão colonial, por causa do racismo, as elites coloniais começaram a ver nessas macumbas um problema. Ou eles entendiam que ali poderia haver uma manifestação diabólica, de forças demoníacas... Porque, na época, e as religiões hegemônicas combatiam tudo que não fosse pertencente a elas. Ou também tinham medo de insurreições, porque as pessoas se juntavam, e eles tinham medo de que em algum momento eles pudessem ir contra os senhores de fazenda, os senhores coloniais.
A ideia para esse projeto, ele surge, inicialmente... Na época, eu estava começando um curso de sacerdócio de Umbanda, né. E tive a sorte de poder ler o livro "Intolerância Religiosa", do professor Sidnei Nogueira, que já tinha expandido muito minha percepção do que é o racismo religioso. Aqui no Brasil a gente não sabe o que é isso, a gente acha que é só quebrar terreiro. É uma forma de violência, [o racismo religioso] está tão impregnado no nosso dia a dia que a gente não sabe o quanto ele está presente.
Então, nessa mesma época, um dia eu estava andando na rua e usando roupas religiosas, no caso, uma roupa branca com fio próprio dos umbandistas, e um motorista me viu ali e jogou o carro em cima de mim na calçada. Nesse dia eu percebi o quão presente é o racismo religioso, o quão presente é o racismo, mesmo sendo um homem branco. Eu nunca havia sofrido racismo na vida. Se fosse uma barbeiragem, uma coisa assim mais banal, o cara teria parado para me acudir; eu tive que literalmente dar uma cambalhota na rua. E aí então eu me liguei na potência que tem a fotografia, graças aos textos do professor Nogueira e do curso que eu estava fazendo, e como eu poderia usar a fotografia para combater a intolerância religiosa.
'Quando Exu atravessou o Atlântico para apoiar seu povo': imagem faz parte da série 'M'kumba', de Gui Christ
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
g1: Como foi o processo para criar essa foto (acima), ''Quando Exu atravessou o Atlântico para apoiar seu povo'?
Gui: Minha ideia, na verdade era poder ilustrar como Exu foi importante para os povos iorubá, pros povos dos terreiros do Brasil. E até hoje Exu ainda é a divindade mais atacada. Então meu intuito era mostrar um rapaz negro, um rapaz iniciado para Exu, onde a gente estava representando não a divindade em si, mas ele... Tanto que ele tá usando até um 'durag', que é um pano que se usa muito no hip hop. Existe o que é do mundo e existe o que é sagrado, mas todos nós estamos no sagrado. Então, para mim, um 'durag' de hip hop também é sagrado. Então quis trazer esses elementos mais modernos para mostrar essa travessia de Exu pelo oceano. Tanto que ele está andando sobre a água, né. Ele está usando apenas um short, uma roupa muito simples, onde ele só está chegando na América para poder ouvir essas preces desses tantos filhos que foram escravizados e sofreram essa violência colonial, pra poder pegar essa mensagem e levar para os outros orixás.
'N'goma chama aqueles que vivem longe': imagem faz parte do projeto 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
g1: E sobre a foto 'N'goma chama aqueles que vivem longe' (acima), o que você pode dizer?
Gui: Com essa outra foto, eu estou falando um pouco sobre a mitologia Congo-Angola, onde existe uma divindade chamada N'goma, que é o tambor. E aqui no Brasil, até aproximadamente a década de 1940, o tambor, principalmente o de origem africana, era proibido. A gente tinha a tal lei de vadiagem. Além da lei de vadiagem, a gente tinha também delegacias de costumes que proibiam os terreiros que não fossem autorizados pelo Estado. Então, muitos desses religiosos daquela época, os antigos Kumbas, os nossos ancestrais, eles iam para as matas para poder realizar os seus rituais e ali poderem invocar os seus Orixás, seus Inquices e também seus ancestrais. Então, a ideia dessa foto foi exatamente isso, mostrar como houve essa perseguição e como o tambor, ao mesmo tempo, ele nos traz felicidade, mas ele também é sagrado.
'A Verdadeira Imagem de Yemanjá': imagem faz parte da série 'M'kumba', de Gui Christ
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
g1: Por fim, como foi a construção de 'A verdadeira imagem de Yemanjá' (acima)?
Gui: Bem, essa última foto, eu estou falando aqui sobre Iemanjá, como ela é vista em África, principalmente nas terras iorubanas. Aqui no Brasil, Iemanjá provavelmente é o orixá mais popular aqui no Brasil. Só que, por causa do racismo, a imagem dela mais popular é de uma mulher branca, magra, muito mais associada às fadas europeias, por exemplo, do que como ela é vista em África. Em África, ela é a divindade do rio Ogum, que se encontra com o mar no delta, e ela é representada como uma mulher negra, por ser iorubana, uma mulher corpulenta de seios fartos e que ela amamenta todos os peixes do mar. Iemanjá quer dizer a mãe cujos filhos são peixes.
g1: Boa. Muito obrigado, Gui. Algum último recado?
Gui: Eu queria dedicar esse prêmio. Eu falo que não é só uma vitória minha, sabe? Acho que é uma vitória de 5 milhões de escravizados que foram trazidos para o Brasil e de todos os seus descendentes. É uma vitória da cultura, da religiosidade e do povo afro-brasileiro. Acho que eu, como homem branco, não poderia ficar quieto. Eu dedico a eles essa vitória.
VEJA FOTOS DO ENSAIO 'M'KUMBA', DE GUI CHRIST
'Pipoca para remover as doenças': imagem faz parte da série 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
'Celebração de Yemanjá': imagem faz parte da série 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
'Um peixe para uma saúde mental melhor': imagem faz parte da série 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
'Os Guardiões das Encruzilhadas': imagem faz parte da série 'M'kumba'
Gui Christ/2025 Sony World Photography Awards
Sony World Photography Awards
Gui Christ foi anunciado na quarta-feira (16) o melhor fotógrafo do ano na categoria Retratos do Sony World Photography Awards 2025 durante cerimônia em Londres.
Trata-se de um dos concursos mais renomados e disputados do mundo; esta edição recebeu a inscrição de 413 mil fotos vindas de mais de 200 países.
O prêmio principal de Fotógrafo do Ano foi para o britânico Zed Nelson, com o ensaio "A Ilusão do Antropoceno", que também garantiu o prêmio na categoria. A premiação profissional se divide em 10 categorias. Dentre esses vencedores, o júri elege um deles como o Fotógrafo do Ano.
A cerimônia também contou com uma homenagem à fotógrafa documentarista Susan Meiselas por sua contribuição extraordinária à fotografia.
É possível conferir mais fotos dos ensaios vencedores e de outros finalistas na página do prêmio.
O fotógrafo Gui Christ posa para foto no Parque Augusta, na Zona Central de São Paulo, após entrevista ao g1
Fábio Tito/g1